A entomofagia, a ingestão destes animais, é estimulada por agência da ONU e estimula segmento de mercado ao redor do mundo.
Nutritivos, acessíveis e mais sustentáveis. Diante da demanda de mais de nove bilhões de pessoas por comida prevista para 2050, estes atributos colocam qualquer alimento na ordem do dia em um debate global sobre nutrição.
Essas caraterísticas têm levado a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) à valorização de um tipo de alimento que enfrenta grande resistência cultural no Ocidente: os insetos, cuja ingestão ganha o nome de “entomofagia”.
Pelo mundo, no entanto, surgem exemplos de que esta resistência – apontada como um obstáculo pela própria FAO em um relatório de 2013, um marco na tendência da entomofagia – está diminuindo. Em maio, a rede Carrefour lançou na Espanha uma linha de dez produtos com insetos entre os ingredientes, como granola e macarrão.
Startups também vêm surgindo nesse nicho, como a Bugfoundation, da Alemanha, que produz hambúrgueres de larvas, ou a Chirps, nos EUA, que vende biscoitinhos salgados de grilos. Há até uma vertente do veganismo que inclui a ingestão de insetos, o chamado entoveganismo.
Pelo Brasil, há também pesquisadores e empreendedores que apostam na nova onda dos insetos, preparando produtos como barras proteicas de larvas de besouro e grilos banhados em chocolate. Para eles, a entomofagia vai muito além de experiências pontuais exóticas e pode, na verdade, vir a ser um mercado de grande escala – mas nisso, dizem, o país está atrasado.
Barreira cultural
Se no mundo, de acordo com a FAO, insetos fazem parte do cardápio de cerca de 2 bilhões de pessoas, o Brasil não tem a tradição de comer insetos como, por exemplo, países da Ásia.
Mas, por aqui, há algumas tradições pontuais. É o caso do consumo de formigas içás ou tanajuras – que já ganharam até festivais em Tianguá, no Ceará, ou Silveiras, em São Paulo. Ou ainda do consumo das formigas maniwara na Amazônia, que remete a tradições indígenas do Alto Rio Negro.
“Grande parte da população associa os insetos a pragas, a algo nojento. Mas uma vez que essa barreira cultural seja ultrapassada, o Brasil poderia ser uma potência por suas riquezas naturais”, diz Neto, professor na Universidade Estadual de Feira de Santana. “Ainda temos pouco conhecimento sobre insetos comestíveis no Brasil. É preciso fazer uma espécie de inventário e muita pesquisa”.
Como no mundo todo, porém, os brasileiros podem estar comendo insetos sem saber: um dos corantes mais usados na indústria, o carmim, é feito a partir de insetos chamados cochonilhas.
O zootecnista Gilberto Schickler se dedica há alguns anos a expandir a entomofagia. Empreendedor na área desde os anos 2000, ele oferece hoje consultoria e cursos para interessados na criação de insetos – desde a sua alimentação ao abate e conservação.
Ele é sócio também na Hakkuna, uma startup que se prepara para lançar no mercado, nos próximos meses, uma barra de proteínas feita com farinha de grilos-pretos, comuns no Brasil. Após passar por testes e uma incubadora, o produto vai recorrer a um formato comumente escolhido para driblar resistências a esse tipo de alimento.
“Há duas formas de apresentar o inseto. Um é por inteiro, o que gera sentimentos de repulsa à curiosidade. Nós optamos por trabalhar com os grilos triturados, em um tipo de farelo mais grosseiro”, explica Schickler, destacando que o público-alvo prioritário está no ramo fitness.
“Em 20, 30 anos, acredito que produtos feitos com insetos estarão em grande escala nos supermercados. Mas trabalhamos para que este segmento seja lucrativo e viável no presente. Se não for um negócio para hoje, ele não vai acontecer: já estamos muito atrasados em relação a outros países.”
No ramo da pesquisa, a doutoranda Ariana Vieira Alves também está prestes a concluir a elaboração de uma barra proteica feita da larva de um besouro do gênero Tenébrio.
“É um inseto de fácil criação, com um ciclo de vida curto, tornando-o bastante viável para a produção”, aponta Alves, que estuda tecnologia ambiental na Universidade Federal da Grande Dourados.
“Diferente de outras carnes como a de boi, você consegue modificar bastante (a constituição nutricional) o inseto dependendo do que ele come, onde vive. Sempre digo que o inseto é como um elo entre o animal e o vegetal: é rico em proteínas como o primeiro, não só no teor mas na qualidade, só que com menos gorduras saturadas”.
Segundo a FAO, os insetos têm uma grande capacidade de “conversão alimentar”: conseguem transformar 2 kg de alimento em 1 kg de massa corporal, enquanto bois fazem isso em uma escala de 8 kg para 1 kg.
“Insetos são fontes de nutrientes e proteínas de alta qualidade se comparados à carne bovina e ao pescado (…) São particularmente importantes como suplemento alimentar para crianças que sofrem de má nutrição, pois a maioria das espécies tem alto teor de ácidos graxos (comparáveis ao pescado). Também são ricos em fibras e micronutrientes como cobre, ferro, magnésio, manganês, fósforo, selênio e zinco”, diz o relatório da entidade.
A agência da ONU destaca também que os insetos produzem menos gases de efeito estufa do que a pecuária convencional, podem se alimentar de resíduos orgânicos e assim reduzir a carga deste tipo de descarte, além de exigir extensões de terra muito menores na criação.
Associação e congresso para representar a entomofagia
‘O Brasil poderá ser um dos celeiros da entomofagia’, aposta Oliveira — Foto: BBC
Mas, para os entrevistados, um passo importante ainda está por vir: uma regulamentação específica da entomofagia voltada para humanos. Este é um dos objetivos que motivaram a criação da Associação Brasileira de Criadores de Insetos, segundo explica um de seus fundadores, o biólogo Casé Oliveira.
“A legislação não proíbe, mas isto (a falta de regulamentação) acaba impedindo que o mercado dê um salto além de produções em pequena escala. Enquanto fica na escala artesanal, o que vemos é monopólio e preços altos”, aponta Oliveira, que trabalha com o tema fazendo palestras e recebendo convidados para uma “entoexperiência”, um menu gastronômico composto de insetos. “O Brasil poderá ser um dos celeiros da entomofagia, pelo simples motivo do nosso clima ser muito propício para isso.”
Oliveira e entusiastas da área planejam, para novembro de 2019, o primeiro congresso brasileiro sobre a “antropoentomofagia” – o consumo humano de insetos e seus derivados.
Por e-mail, a Anvisa explicou que “considerando que o consumo de insetos não possui histórico de uso como alimentos pela população brasileira, as empresas interessadas em utilizar insetos na produção de alimentos devem solicitar junto à Anvisa avaliação da sua segurança”.
“Caso seja demonstrado que as condições e finalidade de uso desses insetos na produção de alimentos é segura para o consumidor, seu uso é autorizado”, completa.
Ainda segundo o órgão, no período em que a agência recebeu propostas de temas a serem eventualmente avalidos em sua agenda regulatória para os anos de 2017 a 2020, não houve sugestões referentes ao consumo de insetos por humanos.
Quais riscos esse tipo de alimento pode apresentar?
Mas, segundo a FAO, nas condições adequadas, não existem casos conhecidos de doenças transmitidas com a ingestão de insetos por pessoas.
Segundo Schickler, a entomofagia pressupõe o consumo de insetos criados em cativeiro, e não retirados livremente da natureza – o abate costuma ocorrer com a inserção destes animais em água fervente, como feito com mariscos.
No entanto, os insetos são maleáveis às condições do ambiente em que estão, acumulando por exemplo pesticidas ou transmitindo agentes biológicos danosos.
“Os insetos precisam dos mesmos cuidados de produção que outros animais, ambientes limpos, higienizados, com manutenção diária, cuidados específicos de isolamento, cuidados com pragas, fungos, além de umidade e temperatura controladas”, aponta o chef Rossano Linassi, que atua no segmento e é professor no Instituto Federal Catarinense (IFC).
Ele destaca também a necessidade de atenção com alergias, principalmente para aqueles que já têm esta sensibilidade com frutos do mar – que têm composição química parecida.
Como o sushi?
Sob condições ideias, Linassi vê um campo inexplorado de gostos e preparos para a entomofagia. Ele faz receitas que vão de grilos cobertos com chocolate a omelete de tenébrios.
“Acredito que assim como ocorreu com o sushi há cerca de 20 anos, o inseto possa ser incorporado aos poucos à dieta regular da população. Entre mais de um milhão de espécies conhecidas (hoje mais ou menos 2 mil catalogadas como alimento), encontraremos novos sabores, aromas e texturas”, escreveu Linassi por e-mail à BBC News Brasil.
Neste caminho para os insetos caírem no gosto dos brasileiros, o chef já conhece os rituais de estranhamento.
“A maioria dos adultos reage com repulsa, principalmente com insetos inteiros, mas muitas vezes eles acabam comendo depois de muito ‘ensaio’. Vários tiram suas selfies e depois dão para seus filhos ou amigos comerem, pois lhes faltou um pouco de ‘coragem’. Rola muitas vezes uma competição entre amigos para ver quem comerá primeiro”, brinca Linassi.
“Mulheres costumam ser mais ‘corajosas’ e tendem a experimentar mais que os homens. Já as crianças são muito mais receptivas e simplesmente perguntam – pode comer?”
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