Trata-se de evidente medida de política criminal visando ao desencarceramento.
1. Introdução, previsão legal e interpretação conferida ao dispositivo
Neste artigo pretendemos fazer breves críticas em relação à forma como as audiências de custódia vêm sendo realizadas no Brasil, especialmente no Estado de São Paulo.
A audiência de custódia atualmente encontra-se regulamentada não em forma de lei, mas através de ato administrativo. Trata-se da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe em seu primeiro artigo:
“Art. 1º Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão”.
Temos, portanto, que a audiência de custódia nada mais é que a obrigação, criada por um ato infralegal, de apresentação do preso detido em flagrante delito, em até 24 horas da comunicação do ato, à autoridade judicial competente.
Tal regulamentação supostamente encontra respaldo nos artigos 9º, item 3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas e 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Vejamos o que dispõem esses dispositivos:
“Art. 9º, item 3 – PIDCP – Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença”.
“Art. 7º, item 5 – CADH – Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
Pois bem. Como podemos depreender, a redação dos artigos acima determina que o preso em situação flagrancial seja conduzido sem demora à presença da autoridade judiciária ou à autoridade que faça suas vezes. No sistema processual penal brasileiro, encontramos a figura do delegado de polícia, que é o componente do sistema de persecução penal a quem o preso deve ser apresentado para a lavratura do auto de prisão em flagrante e demais providências correlatas, nos termos do artigo 304 do Código de Processo Penal. Não à toa, o artigo 3º da Lei 12.830/13 determinou que o cargo de delegado de polícia seja ocupado privativamente por bacharéis em Direito, afinal, esta é a autoridade que concluirá pela tipificação do crime de acordo com a situação apresentada, suas majorantes e qualificadoras, arbitramento ou não de fiança, enfim, toda tipo de decisões que demandam conhecimento eminentemente jurídico na apresentação do preso.
Ora, se o delegado de polícia é a autoridade competente para a primeira decisão sobre o deslinde da ocorrência criminal, desnecessária torna-se a apresentação do preso à autoridade judicial no prazo de 24 horas, de acordo com os dispositivos supralegais acima mencionados. Isso porque o próprio delegado de polícia é o primeiro garantidor dos direitos fundamentais do preso e, detendo conhecimento jurídico suficiente ao exercício do cargo, é, em verdade, “o primeiro juiz da causa”.
Desta forma, entendemos que a interpretação conferida aos dispositivos internacionais supramencionados para implantação da audiência de custódia não se coaduna com a realidade brasileira. Referida audiência faria todo sentido em um país onde a polícia fosse chefiada por um integrante sem formação jurídica. Neste caso, a apresentação do preso à autoridade judicial deveria ser urgente, no intuito de preservar e observar os direitos fundamentais do detido.
No entanto, no singular caso brasileiro, onde existe a figura do delegado de polícia, ao ser regulamentada a audiência de custódia, ocorre inevitável bis in idem, já que são realizados dois atos em sequência para assegurar os direitos do infrator – um em sede policial e outro em sede judicial. É evidente que diante do cenário de ampla proteção de direitos humanos, quanto mais autoridades desempenharem essa função, melhor. No entanto, dada a atual conjuntura sócio-econômica brasileira, e o princípio administrativo da eficiência, entendemos que referida duplicidade enseja gastos e retrabalho que poderiam ser evitados, com melhor aproveitamento dos recursos públicos.
2. Do desrespeito à tripartição de poderes
O artigo 2º da Resolução 213 do CNJ que instituiu a audiência de custódia dispõe que:
“Art. 2º O deslocamento da pessoa presa em flagrante delito ao local da audiência e desse, eventualmente, para alguma unidade prisional específica, no caso de aplicação da prisão preventiva, será de responsabilidade da Secretaria de Administração Penitenciária ou da Secretaria de Segurança Pública, conforme os regramentos locais”.
Ocorre que, ao lavrar referida disposição, o CNJ, órgão vinculado ao Poder Judiciário, estabeleceu obrigação a órgãos do Poder Executivo, em aparente invasão em diversa esfera de poder.
Como a edição desta resolução não foi acompanhada pelos poderes executivos estaduais, não houve provisionamento de recursos e empenho estadual em aumentar o número de servidores para acúmulo de mais esta função. A consequência prática desta determinação é notável: os órgãos policiais, que em sua maioria se encontram com número deficitário de servidores, acabaram sendo sobrecarregados diante da mais nova atribuição, qual seja, o transporte dos presos à audiência de custódia.
Em nosso entender, somente através de lei poderia criar-se obrigação a ente diverso, o que não parece ser o caso em tela.
3. O caso do Estado de São Paulo: o cumprimento parcial da Resolução 213 e possíveis consequências práticas de sua aplicação nos moldes atuais
No Estado de São Paulo a audiência de custódia foi regulamentada pelo Tribunal de Justiça paulista através da Resolução 740/2016. Referida resolução previu um método gradativo de implantação da audiência de custódia.
O artigo 10º de referida resolução definiu que somente a partir de agosto de 2017 passarão a ser realizadas audiências de custódia nos plantões judiciários, isto é, aos finais de semana e feriados. Diante desta determinação, desde sua implantação, somente são apresentados em 24 horas em Juízo aqueles cidadãos presos entre domingo e quinta-feira.
Ou seja, caso possamos considerar que o sujeito que não é apresentado em até 24 horas à presença da autoridade judiciária tem seus direitos fundamentais violados (afinal este parece ser o fundamento da Resolução 213 do CNJ), podemos concluir que caso o cidadão tenha “o azar” de ser preso em flagrante em uma sexta-feira ou sábado, não estará sendo tratado em situação de igualdade com outros que tenham praticado fatos semelhantes em outros dias da semana.
O que se pretende afirmar nesse item é que entendemos que a implantação parcial do sistema de audiências de custódia é uma medida que implica em injustiça, uma vez que permite tratamento desigual apenas por uma questão burocrática – os dias e horários de funcionamento dos fóruns paulistas. Afinal, se as audiências de custódia são de fato indispensáveis, assim devem ser para todos os casos.
Além disso, recentemente o CNJ divulgou números curiosos em relação à audiência de custódia: De 229.634 audiências de custódia realizadas no Brasil, 103.669 (45,15% – quase metade) resultaram na liberdade dos presos em flagrante. Em São Paulo, este número é ainda mais estarrecedor: conforme apresentado pelo canal GloboNews, apenas 9,9% das prisões em flagrante foram convertidas em prisões preventivas.
A primeira impressão que esses números passam é óbvia: a polícia prende demais e prende desnecessariamente. Esta impressão reflete negativamente nos órgãos policiais e torna desestimulante para os agentes da lei a missão de enfrentamento do crime nas ruas. Ora, cientes de que enorme parte das prisões que realizam resultará na soltura dos indiciados no dia seguinte (ou na segunda feira…), ainda que futuramente venham a ser submetidos ao processo criminal, nos parece uma consequência natural que parte do corpo policial se sinta desestimulado em realizar sua missão com afinco, gerando indesejável impunidade, possibilitando a presença de cada vez mais indivíduos perigosos nas ruas.
4. Conclusão
Diante do exposto, concluímos que a implantação da audiência de custódia é um clássico caso brasileiro: embora cheia de boa-vontade, encontra uma série de falhas, tanto no projeto quanto na aplicação prática.
Trata-se de evidente medida de política criminal visando ao desencarceramento. Diante da crise econômica pela qual passa o Brasil e as dificuldades em manter um sistema penitenciário digno e com vagas suficientes, adota-se solução urgente e aparentemente apoiada em tratados internacionais, mas de duvidosa legalidade, e que abre uma gama de temíveis possibilidades futuras.
Fonte: Lucas Neuhauser Magalhães – Delegado de Polícia Civil em São Paulo, bacharel em Direito e especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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