Estudo foi conduzido por cientistas do Instituto Butantan, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Um grupo liderado por pesquisadores do Instituto Butantan e apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) descreveu pela primeira vez a presença de glândulas de peçonha na boca de um anfíbio. O animal sem patas que vive no ambiente subterrâneo, conhecido como cecília ou cobra-cega, possui glândulas associadas aos dentes que, quando comprimidas durante a mordida, liberam uma secreção que penetra nos ferimentos causados nas presas – minhocas, larvas de insetos, pequenos anfíbios e serpentes e mesmo filhotes de roedores.
O estudo foi publicado na iScience. “Estávamos analisando as glândulas de muco que o animal tem na pele da cabeça, para abrir caminho debaixo da terra, quando nos deparamos com essas estruturas. Elas se posicionam na base dos dentes e se desenvolvem a partir do mesmo tecido que lhes dá origem, a lâmina dental, assim como ocorre com as glândulas de peçonha das serpentes”, diz à Agência Fapesp Pedro Luiz Mailho-Fontana, primeiro autor do estudo, que realiza estágio de pós-doutorado no Instituto Butantan com bolsa da Fundação.
Em artigo publicado em 2018 na Scientific Reports, o grupo havia demonstrado que, além de glândulas de muco espalhadas pela pele do corpo, as cecílias possuem uma grande concentração de glândulas de veneno na pele da cauda, como forma de defesa passiva de predadores. Nesse sistema, que existe também nos sapos, rãs, pererecas e salamandras, o predador se envenena ao morder o animal.
Defesa ativa
Agora, os pesquisadores mostraram que as cecílias podem ser peçonhentas, ou seja, seriam os primeiros anfíbios a possuir uma defesa ativa, quando o veneno é usado para atacar, como fazem serpentes, escorpiões e aranhas. A secreção que sai das glândulas serve ainda para lubrificar as presas e facilitar sua deglutição.
“As serpentes acumulam a peçonha em bolsas que, quando pressionadas pelos músculos, é injetada através dos dentes. Nas cascavéis e jararacas, por exemplo, esses dentes são ocos, semelhantes a agulhas de injeção. No caso das cecílias, a compressão das glândulas durante a mordida libera o veneno, que penetra no ferimento. É o que fazem lagartos como o dragão-de-komodo e o monstro-de-gila”, diz Carlos Jared, pesquisador do Instituto Butantan e coordenador do estudo, à Agência Fapesp.
O trabalho integra o projeto “Desvendando o cuidado parental nas cecílias: implicações nutricionais e toxinológicas em Siphonops annulatus”, financiado pela Fapesp. O grupo foi o primeiro a demonstrar, em um trabalho publicado na Nature em 2006, que os filhotes das cecílias da espécie Boulengerula taitanus alimentam-se exclusivamente da pele da mãe nos primeiros dois meses de vida.
Em 2008, o grupo descreveu o mesmo comportamento na espécie Siphonops annulatus, em artigo na Biology Letters. Com exceção de um grupo que vive em ambientes aquáticos, as cecílias passam toda a vida em túneis subterrâneos. Por isso, possuem olhos reduzidos, que percebem a luz, mas não formam imagens. São ainda os únicos vertebrados que possuem tentáculos, próximos aos olhos, que reconhecem o ambiente pelo toque e por receptores químicos.
Caracterização do veneno
Análises bioquímicas mostraram que a secreção que sai da boca do animal durante a mordida contém fosfolipase A2, uma enzima bastante comum no veneno de animais como como abelhas, vespas e serpentes.
A atividade dessa enzima na secreção das cecílias, inclusive, mostrou-se maior do que a existente na peçonha da cascavel. Não é possível afirmar por essa característica, porém, se o animal é mais ou menos peçonhento do que a serpente.
O grupo vai realizar agora novos testes usando técnicas de biologia molecular para caracterizar com mais precisão a secreção das glândulas dentais das cecílias e confirmar seu caráter peçonhento. Futuramente, inclusive, as proteínas encontradas poderiam ser testadas para usos biotecnológicos, como o desenvolvimento de fármacos.
No estudo, foram analisadas quatro espécies de cecílias. Em uma delas, Typhlonectes compressicauda – a única que vive em ambiente aquático –, as glândulas foram encontradas apenas na mandíbula do animal, a parte inferior da boca, e não na maxila, a parte superior.
Os pesquisadores acreditam que, assim como aconteceu ao longo da evolução de algumas serpentes aquáticas, esse grupo de cecílias perdeu tais estruturas, pois a água do ambiente realiza naturalmente a lubrificação das presas. A espécie manteve, porém, as glândulas da mandíbula, provavelmente com peçonha.
Conhecimento
Com a maioria das 214 espécies conhecidas vivendo sob o solo em regiões de floresta úmida da América do Sul, Índia e África, as cecílias são alguns dos animais menos conhecidos pela ciência.
Mais do que novos dados sobre o animal, o estudo traz importantes informações a respeito da evolução de anfíbios e répteis. “Para serpentes e cecílias, a cabeça é a única ferramenta para explorar o ambiente, lutar, comer e matar. É possível que essa tenha sido uma pressão evolutiva para que esses animais sem patas desenvolvessem peçonha”, diz Marta Maria Antoniazzi, pesquisadora do Butantan e outra coautora do estudo, à Agência Fapesp.
O artigo (em inglês) pode ser lido em: https://www.cell.com/iscience/fulltext/S2589-0042(20)30419-3.