Comprovado contra o coronavírus, uso do RNA mensageiro (mRNA) também se mostra promissor contra alguns tipos de câncer e de vírus.
Quando os dados finais da Fase 3 foram divulgados em novembro de 2020 mostrando que as vacinas de RNA mensageiro (mRNA) feitas pela Pfizer/BioNTech e Moderna eram eficazes em mais de 90%, o pesquisador Anthony Fauci, um dos principais cientistas dos Estados Unidos no combate ao coronavírus, não disse nada. Ele mandou uma mensagem com emojis sorridentes para um jornalista esperando sua reação.
A eficácia surpreendente tem se sustentado em estudos nos Estados Unidos, Israel e em outros países. A tecnologia de mRNA — desenvolvida por sua velocidade e flexibilidade, agradou e surpreendeu até mesmo aqueles que já a defendiam.
A plataforma de RNA mensageiro pode ser nova para o público global, mas é uma tecnologia na qual os pesquisadores vêm apostando há décadas. Agora, essas apostas estão valendo a pena, e não somente pelo enfrentamento de uma pandemia que matou milhões em apenas um ano.
Essa abordagem que levou a vacinas notavelmente seguras e eficazes contra um novo vírus também se mostra promissora contra velhos inimigos como HIV, infecções que ameaçam bebês e crianças pequenas, como o vírus sincicial respiratório (RSV), e o metapneumovírus.
Também está sendo testada para tratar alguns tipos de câncer, incluindo melanoma e tumores cerebrais. Pode ser uma nova maneira de combater doenças autoimunes. E também está sendo verificada como uma possível alternativa à terapia genética para doenças intratáveis, como a anemia falciforme.
Vacinas
A história das vacinas de mRNA remonta ao início dos anos 1990, quando o pesquisador húngaro Katalin Kariko, da Universidade da Pensilvânia, começou a testar a tecnologia de mRNA como uma forma de terapia genética. A ideia é semelhante, tanto se os cientistas usarem a molécula de mRNA para curar doenças quanto preveni-las.
Os pesquisadores gostam de usar a analogia de um livro de receitas. O DNA do corpo é o livro de receitas. O RNA mensageiro é uma cópia da receita — que desaparece rapidamente. No caso de doenças genéticas, pode ser usado para instruir as células a produzir uma cópia saudável de uma proteína.
No caso das vacinas de mRNA, é usado para orientar as células a fabricar o que parece ser um pedaço de vírus, de modo que o corpo produz anticorpos e células especiais do sistema imunológico em resposta.
Kariko não conseguiu despertar muito interesse por essa ideia durante anos. Mas nos últimos 15 anos ou mais, ela se juntou ao médico Drew Weissman, um especialista em doenças infecciosas da Penn Medicine, para aplicar a tecnologia de mRNA às vacinas.
Desde que os cientistas começaram a se concentrar na ameaça de uma pandemia causada por uma nova gripe ou coronavírus, eles reconheceram a característica promissora das vacinas de mRNA.
“Se você quiser fazer uma nova vacina contra a gripe usando os métodos tradicionais, precisa isolar o vírus, aprender a cultivá-lo, aprender a inativá-lo e purificá-lo. Isso leva meses. Com o RNA, você só precisa da sequência”, disse Weissman.
Os pesquisadores nem precisaram de uma amostra do vírus em si. “Quando os chineses lançaram a sequência do vírus SARS-CoV-2, iniciamos o processo de produção de RNA no dia seguinte. Algumas semanas depois, estávamos injetando a vacina em animais”.
Embora parecesse revolucionária, a ideia estava longe de ser nova para Weissman, Kariko e outros. “Em meu laboratório, trabalhamos com vacinas há anos. Temos cinco testes clínicos de Fase 1 que iniciamos antes da chegada da Covid-19”, disse Weissman, cujo trabalho com Kariko ajudou a levar à vacina contra o coronavírus da Pfizer/BioNTech.
“Eles foram adiados por causa da pandemia. O plano é concluí-los no próximo ano.”
Duas dessas vacinas experimentais têm como alvo a gripe, incluindo uma que Weissman espera que seja a chamada vacina universal contra a gripe — que protegerá contra cepas do vírus influenza em mutação rápida e talvez ofereça às pessoas anos de proteção com uma única dose, eliminando a necessidade de novas imunizações a cada temporada de gripe.
Os cientistas também estão trabalhando em duas vacinas contra o vírus da imunodeficiência humana, ou HIV, que causa a Aids, e uma para prevenir o herpes genital. Eles estudaram ainda vacinas de mRNA para combater Ebola, raiva, citomegalovírus e Zika.
Outro alvo possível: vírus sincicial respiratório. O RSV infecta a maioria das pessoas na infância e pode colocar bebês frágeis na unidade de terapia intensiva neonatal (UTIN). Ele mata cerca de 100-500 crianças por ano, estima os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) – mas mata cerca de 14 mil adultos, a maioria com mais de 65 anos.
“Ele infecta todo mundo aos 2 anos”, disse Jason McLellan, biólogo estrutural e detentor da cadeira Robert A. Welch em Química na Universidade do Texas em Austin, cujo trabalho é a base de várias vacinas contra o coronavírus.
Um obstáculo será encontrar a melhor versão dos vírus. McLellan se especializou em encontrar a conformação certa das estruturas virais alvo que permitirão ao sistema imunológico humano melhor reconhecer e construir defesas contra elas.
A farmacêutica GlaxoSmithKline e a Pfizer estão trabalhando nisso, disse ele. Um vírus diferente do resfriado comum chamado metapneumovírus humano, que pode causar pneumonia em adultos e crianças, é outro alvo potencial para uma vacina, disse McLellan.
Mais uma vez, o trabalho em andamento ajudou a acelerar o desenvolvimento de vacinas contra o coronavírus, disse McLellan. Nesse caso, o trabalho sobre os vírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave original de 2003-2004, ou SARS, e da Síndrome Respiratória do Oriente Médio, MERS, ajudou os pesquisadores a entender qual versão da estrutura encontrada na parte externa do vírus, chamada de proteína Spike, deveria ser usada na preparação de vacinas.
“Descobrimos como estabilizar as espículas [proteína S] do coronavírus em 2016, então tínhamos todo o conhecimento pronto quando a Covid-19 surgiu”, disse McLellan. Estava pronto “em poucas horas”, disse.
Outras vacinas potenciais incluem malária, tuberculose e vírus raros, como o vírus Nipah, disse Weissman – todas tornadas mais possíveis pela tecnologia de mRNA. Vacinas eficazes contra essas infecções têm escapado aos cientistas por várias razões.
O laboratório de Weissman está trabalhando agora em uma vacina universal contra o coronavírus que protegeria contra Covid-19, SARS, MERS, coronavírus que causam o resfriado comum – e cepas futuras.
“Começamos a trabalhar em uma vacina de pan-coronavírus na primavera passada”, disse Weissman. “Houve três epidemias de coronavírus nos últimos 20 anos. Haverá mais”.
E as vacinas de mRNA funcionam muito bem. “Sabíamos que eram muito potentes em camundongos, macacos, coelhos, porcos e galinhas “, disse Weissman. A vacina da Pfizer, disse ele, produz uma resposta de anticorpos cinco vezes maior do que a observada em pessoas que se recuperaram da infecção.
Câncer
Outro uso óbvio da tecnologia de mRNA é no combate ao câncer. O organismo humano luta contra o câncer todos os dias e o uso de RNA mensageiro pode ajudá-lo a fazer isso de forma ainda melhor. “Você pode usá-lo para que seu corpo produza uma molécula benéfica”, disse McLellan.
Diferentes tipos de células tumorais têm várias estruturas na parte externa que o sistema imunológico pode reconhecer. “Você pode imaginar ser capaz de injetar em alguém um mRNA que codifica um anticorpo que tem como alvo específico esse receptor”, disse McLellan.
A Moderna — empresa formada especialmente para desenvolver tecnologia de mRNA — está trabalhando em vacinas personalizadas contra o câncer. “Identificamos mutações encontradas nas células cancerosas de um paciente”, diz a empresa em seu site.
Algoritmos de computador preveem as 20 mutações mais comuns. “Nós, então, criamos uma vacina que codifica cada uma dessas mutações e as carregamos em uma única molécula de mRNA”, diz a Moderna.
Isso é injetado no paciente para tentar ajudar a orquestrar uma melhor resposta imunológica contra os tumores. Esta é uma pesquisa clínica inicial de Fase 1.
Os fundadores da BioNTech, Ugur Sahin e Ozlem Tureci, também tinham em mente vacinas contra o câncer desde o início. A empresa tem oito tratamentos de câncer em potencial em testes em humanos. “Embora acreditemos que nossa abordagem seja amplamente aplicável em uma série de áreas terapêuticas, nossos programas mais avançados estão focados em oncologia, onde tratamos mais de 250 pacientes em 17 tipos de tumor até o momento”, diz a empresa em seu site.
Doenças autoimunes
Usar o mRNA para combater doenças autoimunes é uma “área emocionante”, disse McLellan. Os tratamentos atuais são rudimentares e envolvem a eliminação de áreas específicas da resposta imunológica equivocada — algo que pode deixar os pacientes com doenças autoimunes como lúpus ou artrite reumatóide vulneráveis à infecção.
A BioNtech tem trabalhado com pesquisadores acadêmicos para usar mRNA no tratamento de camundongos geneticamente modificados para desenvolver uma doença semelhante à esclerose múltipla – uma doença autoimune que começa quando o sistema imunológico ataca por engano a mielina, uma membrana lipídica das células nervosas.
Nos camundongos, o tratamento pareceu ajudar a interromper o ataque, ao mesmo tempo que mantinha o resto do sistema imunológico intacto.
Terapia genética
A ideia por trás da terapia genética é substituir um gene defeituoso por outro que funcione corretamente. Apesar de décadas de trabalho, os pesquisadores não tiveram muito sucesso, com exceção de certas deficiências imunológicas e algumas doenças oculares.
É difícil encontrar um vetor para transportar o gene corrigido para as células sem causar efeitos colaterais e de uma forma que seja duradoura.
A abordagem do mRNA promete enviar instruções para fazer a versão saudável de uma proteína, e Weissman vê uma promessa especial no tratamento da anemia falciforme, em particular.
Na doença, os glóbulos vermelhos assumem uma forma dobrada e podem obstruir os vasos sanguíneos, causando dor e danos aos órgãos. O RNA mensageiro pode ser usado para alterar as instruções que vão para a medula óssea, onde os glóbulos vermelhos são produzidos, orientando a produção de células com formas mais saudáveis.
“Agora que podemos direcionar essa célula, a esperança é que possamos dar às pessoas uma injeção de RNA que terá como alvo as células-tronco da medula óssea e poderá corrigir a doença”, disse Weissman.
“É uma terapia genética sem o preço de meio milhão de dólares”, acrescentou. “Deve ser apenas uma injeção intravenosa e é isso”.
Os testes em camundongos são promissores – o próximo passo é testar a abordagem em macacos, disse Weissman.
Em 2008, uma empresa então chamada Shire Pharmaceuticals começou a desenvolver tratamentos de mRNA para fibrose cística – uma doença genética fatal causada por uma série de pequenas mutações em um gene chamado CFTR.
Essa tecnologia agora é propriedade da Translate Bio, uma empresa dedicada a fazer terapias de mRNA e vacinas. Ela está trabalhando para corrigir o CFTR defeituoso nos pulmões, fornecendo mRNA por meio de um nebulizador. O tratamento parece seguro em testes de estágio inicial em pessoas e ganhou o status de medicamento órfão [destinado ao tratamento de doenças raras, geralmente fruto do uso de tecnologias avançadas] da Food and Drug Administration, órgão semelhante à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), dos Estados Unidos.
Doenças transmitidas por carrapatos
A abordagem do mRNA também pode funcionar contra algumas doenças transmitidas por carrapatos, disse Weissman. “A ideia é que, se você for imune às proteínas da saliva do carrapato, quando ele lhe pica, seu corpo produz inflamação, e o carrapato cai”, disse Weissman.
A doença de Lyme é causada pela bactéria Borrelia burgdorferi, e o carrapato geralmente precisa permanecer preso por 36 a 48 horas antes de transmitir a bactéria ao hospedeiro. Se o carrapato cair antes disso, ele não poderá transmitir a infecção.
(Este é um texto traduzido. Leia o original, em inglês)